Artigo | Direitos de exclusividade sobre a propriedade intelectual: monopólio jurídico vs. monopólio econômico
18/02/2003
Admite-se, atualmente, a aplicação da teoria das falhas de mercado aos direitos de propriedade intelectual, como forma de explicar a sua concepção. O Estado, por meio da concessão de direitos de propriedade intelectual, intervém no livre andamento da concorrência, com o objetivo de corrigir as falhas de mercado (market failure). Trata-se de uma concessão de exclusividade de direitos, para assegurar o retorno de investimentos, o que, pelas forças normais do mercado, seria inviabilizado pela livre reprodução.
A exclusividade conferida opera como recompensa pela contribuição ao patrimônio científico, objetiva a recuperação de investimentos, o incentivo a novos aportes em pesquisa e desenvolvimento e, ainda, confere proteção contra a concorrência desleal. Assim, os titulares de marcas, patentes e demais direitos de propriedade intelectual ficam resguardados contra a concorrência de imitadores (free riders), que não se sujeitaram aos custos do processo criativo.
Esta exclusividade representa um monopólio jurídico, e não um monopólio econômico, pois recai sobre um meio de se explorar o mercado sem impedir que, por soluções técnicas diversas, terceiros explorem a mesma atividade. Dessa forma, é equivocado presumir que há conflito entre monopólio de propriedade intelectual e livre concorrência.
No que se refere ao licenciamento e à transferência de direitos de propriedade intelectual entre agentes econômicos, não se fazendo presente a dominação do mercado, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros, a pactuação deve ser respeitada. Apenas em restritas situações, o trânsito dos direitos pode vir a causar efeitos danosos à concorrência. É o caso da negociação se dar entre empresas consideradas concorrentes em determinado mercado relevante, por haver o agrupamento de marcas ou tecnologias que antes concorriam, podendo configurar concentração de poder econômico conforme a participação das empresas naquele segmento.
A lei brasileira de defesa da concorrência, Lei nº 8.884 de 1994, dispõe em seu art. 21 sobre a vedação a “condutas empresariais que açambarquem ou impeçam a livre exploração de direitos de propriedade industrial ou de tecnologia”. Este dispositivo é considerado o ponto mais importante da relação entre a livre concorrência e a propriedade intelectual, pois prevê a possibilidade de o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) examinar o impacto das práticas dos agentes ao realizarem atos e contratos que compreendam a exploração de direitos de propriedade intelectual.
As condutas de licenciamento ou transferência de ativos de propriedade intelectual podem ser reprimidas, desde que comprovado que poderão produzir algum dos seguintes efeitos: I) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; II) dominar mercado relevante de bens ou serviços; III) aumentar arbitrariamente os lucros; e IV) exercer de forma abusiva posição dominante. São os requisitos essenciais para a classificação das condutas empresariais como anticoncorrenciais.
Para verificar o impacto negativo de um contrato de licenciamento na estrutura competitiva de um mercado, é necessário que se identifique precisamente o segmento onde é travada a concorrência (mercado geográfico e material) e o nível de participação mercadológica do licenciante e do licenciado, para determinar se detêm posição dominante e, consequentemente, a potencialidade em restringir a concorrência naquele determinado mercado.
Caso o licenciante e o licenciado não sejam considerados competidores diretos, os efeitos das cláusulas contratuais de exclusividade na concorrência ficam substancialmente reduzidos. No entanto, mesmo que haja uma relação horizontal ou vertical entre os contratantes, não necessariamente a celebração de contrato de licenciamento caracterizará violação à concorrência, pois para configuração do ilícito é necessário que o acordo apresente os efeitos anticompetitivos mencionados.
Casos há em que os contratos envolvendo direitos de propriedade intelectual deverão ser submetidos ao CADE para uma análise preventiva, em razão das criações intelectuais serem reconhecidas como ativos empresariais que integram o patrimônio dos empresários. Nessas hipóteses, é preciso avaliar se as empresas envolvidas na alienação do ativo de propriedade intelectual detêm elevada participação no mercado (20% do mercado relevante ou faturamento anual no Brasil superior a R$ 400 milhões) de modo a causar impacto sobre a concorrência.
As decisões do CADE têm sido flexíveis tanto nas investigações de infrações à ordem econômica quanto nas análises preventivas de contratos. Isso porque, mesmo que a pactuação prejudique a concorrência de imediato, poderá trazer eficiências a longo prazo, principalmente se beneficiar a inovação tecnológica e contribuir para o desenvolvimento econômico do país.
Não existem, neste campo de apreciação, condutas consideradas ilícitas per se. Seguindo a regra da razão (rule of reason), as cláusulas contratuais que dispõem sobre licença ou transferência de direitos de propriedade intelectual devem ser analisadas de acordo com cada caso concreto pelos órgãos da concorrência.
Pode-se afirmar, portanto, que, em vista dos aspectos competitivos dos contratos de licenciamento ou transferência de direitos e da prevalência da regra da razão na análise de condutas empresariais, a licitude da exclusividade prevista nesses instrumentos dar-se-á pelo exame da conduta específica e a realização de ponderações, de um lado, dos efeitos anticompetitivos e, de outro, das possíveis eficiências identificadas.
Fabrícia Alcantara é advogada do escritório Bhering Advogados